PENTECOSTES: RIVALIDADES DESNECESSÁRIAS

24 ago

INTRODUÇÃO: Na era cristã, o termo Pentecostes aponta para o evento relatado em Atos 2:1-12 que descreve a descida do Espírito Santo sobre um grupo de discípulos que estavam reunidos em Jerusalém. Antes disto, o termo estava ligado a uma das celebrações judaicas, conhecida como a festa das semanas ou pentecostes, e era celebrada sete semanas após a páscoa judaica. Lucas, no relato que fez do evento, no livro de Atos, descreveu que os discípulos provaram de fenômenos sobrenaturais, dados por Deus, tais como: línguas de fogo que pousaram sobre eles, capacitando-os a falar em línguas estrangeiras, que eles mesmos, os falantes, não entendiam. O apóstolo Pedro, em sua explicação do fenômeno (At.2:14-36), afirmou que o que havia acontecido era o cumprimento da profecia dada por Joel 2:28-32.

Tanto teólogos reformados como teólogos pentecostais defendem que a compreensão sobre o Pentecostes e seus desdobramentos pode ser um ponto de partida para entendermos como a doutrina do Espírito Santo é trabalhada dentro de uma tradição cristã. Gaffin escreveu que “praticamente tudo quanto o Novo Testamento ensina a respeito da obra do Espírito Santo antecipa o Pentecoste ou remonta a ele. O que realmente aconteceu naquele dia é a questão de suma importância”[1]. Este artigo mostrará, de maneira panorâmica, qual é o entendimento de reformados e pentecostais para as seguintes questões: o que foi o pentecostes? E ele, de alguma forma, ainda continua nos dias de hoje? Por fim, será mostrado que a rivalidade entre a abordagem reformada (soteriológica) e a abordagem pentecostal (carismática) sobre o pentecostes trás mais perda do que ganho para a igreja como um todo.

O que foi Pentecostes?

Na tradição reformada, o pentecostes é classificado como um fenômeno extraordinário que serviu para inaugurar ou instituir a Igreja de Deus que dali em diante teria a presença real do Espírito Santo junto com eles. Mesmo reconhecendo a atuação do Espírito Santo no Velho Testamento, Kuyper defendeu que “não se pode duvidar de que as Escrituras Sagradas tencionam nos ensinar e convencer que o derramamento do Espírito Santo no Pentecostes foi sua primeira e real vinda à Igreja”[2]. Este fenômeno extraordinário, que serviu para instituir a Igreja, aconteceu de forma separada sobre os grupos ou povos que representariam esta Igreja, mas eles devem ser entendidos numa unidade. Por isso que Kuyper também escreveu que “o derramamento do Espírito Santo não foi limitado ao Pentecostes, em Jerusalém, mas se repetiu posteriormente de forma mais limitada e menos intensa, mas, ainda assim, extraordinária, como no Pentecostes”[3] e acrescentou: “é necessário distinguir entre o derramamento comum que agora ocorre e o extraordinário, de Corinto, Cesáreia, Samaria e Jerusalém”[4].

O Pentecostes extraordinário se refere “aos quatro pentecostes” registrados em Atos e que, segundo Sproul, serviu para mostrar “que todos os crentes fazem parte integral da Igreja do Novo Testamento. Não haveria cidadãos de segunda classe no reino de Deus. Judeus, samaritanos, tementes a Deus e gentios, todos receberam o batismo no Espírito Santo”[5]. Por isso, este Pentecostes Extraordinário, na tradição reformada, é descrito como o momento em que “Cristo, como o Cabeça glorificado, tendo formado seu corpo espiritual pela união vital dos eleitos, no dia de Pentecostes, derramou seu Espírito Santo em todo o corpo, para nunca mais se separar dele”[6]. Kuyper defendeu que este Pentecostes Extraordinário “nunca se repetiu e só podia ocorrer uma vez”[7] e aconteceu de forma “definitiva e para sempre”[8].

O “Pentecostes” comum, que mais precisamente deve ser chamado na tradição reformada por “derramamento comum”, se refere ao enchimento “inconsciente” que cada pessoa recebe ao ingressar no corpo de Cristo. Uma vez que a Igreja foi constituída, unindo as partes judias e gentílicas da mesma, por meio da vinda do Espírito Santo de forma extraordinária, agora, “as pessoas recém-convertidas recebem o Espírito Santo somente da maneira comum. Aqueles que são convertidos entre nós já estão na aliança, já pertencem à semente da Igreja e ao corpo de Cristo. Assim sendo, não são formadas novas conexões, mas a obra do Espírito Santo é realizada em uma alma com a qual ele já estava relacionado por meio do corpo”[9].

A vinda do Espírito Santo sobre a Igreja é um dos marcadores da redenção de Deus sobre sua criação. Sproul resumiu a essência do Pentecostes da seguinte maneira: “todo crente, desde o Pentecostes até o presente, tanto é uma pessoa regenerada pelo Espírito Santo quanto é batizada pelo Espírito. Essa é a essência do sentido de Pentecostes. Qualquer coisa menos do que isso lança uma sombra sobre a importância sagrada do Pentecostes na história da redenção”[10] e Gaffin defendeu que “a única coisa que Pentecoste significa é que Jesus exaltado está aqui com sua Igreja para nela permanecer”[11] .

Na tradição Pentecostal, o Pentecostes também é visto como um fenômeno que marcou a vinda do Espírito Santo sobre a Igreja de forma especial. No entanto, a partir de uma hermenêutica lucana, o Pentecostes também é entendido como capacitação continua sobre a igreja para o testemunho, o serviço e missão. Um paradigma permanente, um referencial e modelo para a igreja em todos os tempos. Menzies escreveu que “nós, pentecostais, sempre lemos a narrativa de Atos e, particularmente, a narrativa do derramamento pentecostal do Espírito Santo (Atos 2), como modelo para a vida”[12]. O Pentecostes, de acordo com a promessa de Jesus aos discípulos em At.1:8, marca um derramar contínuo e permanente do poder sobrenatural do Espírito sobre a igreja para que esta testemunhe do Senhor em todo tempo. Menzies defendeu que “Lucas nos desafia a dar testemunho de Jesus com ousadia, independentemente dos obstáculos ou oposição diante de nós, para que possamos nos apoiar no poder do Espírito para nos sustentar e nos conceder força”[13].

Os pentecostais também defendem que “de acordo com Lucas, o Espírito, entendido como a fonte da atividade profética, veio sobre os discípulos no Pentecostes, a fim de prepará-los para a vocação profética”[14]. Não uma profecia com mesmo peso e valor canônico, mas de peso e valor para o testemunho e proclamação do Evangelho. Por último, Pentecostes se relaciona com a missão que é dada a igreja, de forma permanente, de levar o Evangelho a todos os povos. Keener escreveu que “o Pentecostes é para todos os povos; sua repetição entre os samaritanos (At.8:14-17) e gentios (At.10:44-48) enfatiza que cristãos que surgem de novos grupos de pessoas também recebem a capacitação para a missão e se tornam parceiros de missões dos primeiros cristãos”[15].

Pentecostes, de alguma forma, continua hoje?

Os reformados entendem ser um grave erro suplicar por um “novo” pentecostes hoje. Kuyper escreveu: “que a oração por outro derramamento ou batismo do Espírito Santo é incorreta e vazia de significado real. Tal oração, na verdade, nega o milagre do Pentecostes, pois aquele que veio e habita conosco não pode mais vir a nós”[16]. Sproul também escreveu que sua “queixa contra a teologia neopentecostal é que essa teologia tenha uma visão muito pequena do Pentecostes”.

Gaffin defendeu que na obra de salvação, o Pentecoste completou uma sequência com os eventos Ressurreição e Ascensão, sendo “o último elemento”[17] e por isso “é culminante e definitivo”[18]. Assim como a ressurreição e a ascensão não podem ser repetidas, para Gaffin, o Pentecoste foi um evento único na história da salvação e aqueles que leem Atos atrás de “paradigmas permanentes para a experiência cristã”[19] estão entendendo “erroneamente a teologia de Lucas”[20].

Já os pentecostais não veem problemas em orarem para que um “novo” pentecostes aconteça em suas vidas, pois têm em mente o aspecto carismático que enfatiza a capacitação continua do Espírito para as tarefas de testemunhar, servir e evangelizar as nações. Eles acreditam que, até a segunda vinda de Cristo, o Espírito continuará sendo derramado sobre a Igreja. O pentecostes é um evento que pode e deve ser repetido na Igreja em todos os tempos, certamente que, em seu propósito inaugural, o pentecostes foi único, mas, em seu propósito de capacitar a igreja com poder para o serviço e testemunho da fé, o pentecostes permanece como um paradigma para a igreja. Menzies escreveu que “o Espírito de Pentecostes é, na realidade, o Espírito para os outros, o Espírito que impele e capacita a igreja para levar as ‘Boas Novas’ de Jesus a um mundo perdido e agonizante”[21].

CONCLUSÃO: As abordagens que cada tradição tem dado ao fenômeno do Pentecostes, quando vistas de forma paralela, se complementam e cooperam para o fortalecimento da Igreja de Deus. No seu aspecto soteriológico, o Pentecostes foi o marco inicial da Igreja, unindo, de uma vez por todas, judeus e gentios em um só corpo; em seu aspecto carismático, ele foi e continua sendo a capacitação de poder dada a Igreja para o testemunho e serviço.

            A impressão que fica é que o entendimento reformado sobre Pentecostes tem os feito parar no aspecto soteriológico, fechando-os para o aspecto carismático. O resultado disto é que as atividades do Espírito têm sido vinculadas a era apostólica e não têm uma continuidade nos dias de hoje. Certamente, esta aparente passividade tem sido alvo de muitas críticas. Uma delas é que os reformados viveriam um tipo de “deísmo intelectualizado” e uma “hermenêutica antisobrenatural”, ou seja, o Espírito Santo completou a obra de salvação e, com o fechamento do cânon, se tornou “inativo” ou “inoperante” na vida da igreja. Gaffin, mesmo reconhecendo os perigos que envolvem os cessacionistas e a necessidade de se precaverem contra estes perigos, se defendeu dizendo que “descrever nossa posição classificando-a de quase deísmo que exclui o sobrenatural […] não nos ajudará”[22]. No entanto, dentro dos círculos reformados, podem ser encontradas algumas posições diferentes sobre este tema. Uma delas foi do renomado pastor de Westminster Chapel, Dr. Lloyd-Jones, que escreveu: “é uma obviedade dizer que todo avivamento da religião é, em certo sentido, uma repetição de Pentecostes. O Pentecostes foi o início, o primeiro, mas depois há essas repetições em Atos, na casa de Cornélio, nas pessoas em Éfeso e assim por diante”[23]. Ou seja, para Lloyd-Jones, o pentecostes segue se repetindo na história.

            O movimento pentecostal tem dado ênfase ao aspecto carismático do Espírito e acredita que a igreja de hoje é a continuidade da igreja primitiva, com as mesmas necessidades de serem revestidos de poder para o testemunho, serviço e proclamação do evangelho ao mundo. Certamente que isto tem gerado exageros e provocado muitas críticas também. Uma delas é que a busca por um “novo” pentecostes através do batismo no Espírito Santo geraria uma classe especial de crentes, um elitismo, mas Menzies se defendeu dizendo que “acredito que a acusação de elitismo só é exata quando os pentecostais traçam uma ligação necessária entre o batismo no Espírito e a maturidade cristã ou fruto do Espírito, o que em geral não fazem. Como já observamos, os pentecostais descrevem o batismo no Espírito como capacitação para a missão”[24].

            A visão que cada tradição tem sobre o Pentecostes tem criado pressupostos que moldam as compreensões sobre outros temas ligados a Obra do Espírito Santo. Mas não há necessidade de rivalizar os aspectos soteriológico e carismático, pelo contrário, a soma deles será mais proveitosa para a Igreja do que a sua rivalidade. Parece que, neste ponto, os pentecostais e, mais precisamente, os pentecostais-reformados, por abraçarem ambos os aspectos, estão mais abertos e cônscios na busca por uma posição mais conciliadora que, certamente, fará desaparecer ou diminuir muitas das controvérsias que ainda persistem na dialética pentecostal-reformada. Pode se dizer que o Pentecostes é, ao mesmo tempo, o marco inaugural da Igreja como um corpo; mas é, também, o marco da capacitação de poder do Espírito sobre este corpo. Capacitação esta que, no tempo e no espaço, precisa ser renovada.


[1] GAFFIN, R. In: GRUDEM, W. Cessaram os Dons Espirituais? Editora Vida, 2003. p.30.

[2] KUYPER, A. A Obra do Espírito Santo. Cultura Cristã, 2010. p.148

[3] Ibid., p.156.

[4] Ibid., p.156.

[5] SPROUL, R. O Mistério do Espírito Santo. Cultura Cristã, 2013. p.111,112.

[6] KUYPER, A. A Obra do Espírito Santo. Cultura Cristã, 2010. p.153.

[7] Ibid., p.153.

[8] Ibid., p.156.

[9] Ibid., p.157.

[10] SPROUL, R. O Mistério do Espírito Santo. Cultura Cristã, 2013.  p.115.

[11] GAFFIN, R. In: GRUDEM, W. Cessaram os Dons Espirituais? Editora Vida, 2003. p.33.

[12] MENZIES, R. Pentecostes: Essa História é a Nossa História. CPAD, 2020, p.21.

[13] Ibid., p.35.

[14] MENZIES, R. Pentecostes: Essa História é a Nossa História. CPAD, 2020, p.52.

[15] KEENER, C. Hermenêutica do Espírito. Vida Nova, 2018. p.117.

[16] KUYPER, A. A Obra do Espírito Santo. Cultura Cristã, 2010. p.157.

[17] GAFFIN, R. In: GRUDEM, W. Cessaram os Dons Espirituais? Editora Vida, 2003. p.33.

[18] Ibid., p.33.

[19] Ibid., p.31.

[20] Ibid., p.31.

[21] MENZIES, R. Pentecostes: Essa História é a Nossa História. CPAD, 2020. p.53.

[22] GAFFIN, R. In: GRUDEM, W. Cessaram os Dons Espirituais? Editora Vida, 2003. p.27.

[23] LLOYD-JONES, M. O Batismo e os Dons do Espírito. Carisma, 2020. p.61.

[24] MENZIES, R. Pentecostes: Essa História é a Nossa História. CPAD, 2020. p.81.

Deixe um comentário